São Paulo - Governos que são reeleitos nas democracias costumam viver uma espécie de lua de mel com o país, pelo menos durante certo tempo. 

É o esperado quando um governante recebe o aval dos eleitores para permanecer por mais um período no poder. 

A presidente Dilma Rous­seff, porém, vem enfrentando uma realidade bem diversa.

Na sexta-feira 14 de novembro, a Polícia Federal prendeu 18 executivos, entre eles três presidentes de algumas das maiores construtoras do país — e deixou a classe política de Brasília em polvorosa. 

Ninguém sabe o que virá pela frente, mas o certo é que o governo Dilma foi para a defensiva num momento em que deveria estar em estado de graça pós-eleição.

No front econômico, as primeiras notícias até que animaram os investidores, especialmente após uma inesperada alta dos juros e uma elevação — tímida, é verdade — do preço da gasolina. 

Quem apostou na volta da racionalidade econômica logo se frustrou.

Em primeiro lugar, a anunciada substituição do ministro da Fazenda, Guido Mantega, virou uma novela cujo final ainda não se sabe se será feliz. 

Mas o pior veio no campo das contas públicas.
Faltando 50 dias para o fim do primeiro mandato, Dilma enviou ao Congresso um projeto de lei para autorizar o governo a fazer uma gambiarra: abater do cálculo do superávit primário todos os gastos do Programa de Aceleração do Crescimento e as renúncias tributárias que beneficiaram setores como o automotivo.

A proposta — movida pelo fato de que o que deveria ser um superávit virou um déficit de 16 bilhões de reais até setembro — culmina a série de artifícios adotados para camuflar a situação real do caixa do governo. 

Com abatimentos estimados em 130 bilhões de reais, a conta do ano voltaria criativamente para o azul. Mas com uma sequela grave.

“A mudança de regra significaria que não há mais meta fiscal”, diz Ilan Goldfajn, economista-chefe do banco Itaú. 

Isso vai fazer falta quando o governo comunicar as metas para 2015 — quem vai acreditar que elas serão para valer? 

Ou seja, os problemas que geram falta de confiança estão sendo aprofundados. 

Se o projeto mandado ao Congresso for aprovado, o governo evitará o risco de descumprir a lei orçamentária de 2014, o que caracterizaria uma irresponsabilidade fiscal. 

Mas a entrega de um resultado maquiado não é capaz de alterar a realidade. E a realidade é que as contas públicas estão desajustadas.

O desarranjo fiscal é só parte do problema. A pouca efetividade no combate à inflação e o represamento de preços administrados, como os de energia elétrica e de combustíveis, provocaram uma série de distorções que, cedo ou tarde, terão de ser corrigidas.

A conta foi criada pelos erros cometidos pelo governo, mas terá de ser paga pela sociedade. ­EXAME pediu a especialistas uma estimativa do custo da correção das contas públicas, dos preços administrados e do aumento dos juros necessário para controlar a inflação. O resultado: 283 bilhões de reais.

Esse valor é produto de uma soma de parcelas. A maior, de 145 bilhões de reais, é uma estimativa do aumento de impostos necessário para o reequilíbrio das contas públicas. 

As demais dizem respeito ao efeito do reajuste dos preços da gasolina, do diesel e da eletricidade, além do aumento do custo da dívida com a elevação da taxa de juro esperada ao longo de 2015.

É importante ressaltar que se trata de estimativas feitas com base em algumas premissas e que o governo pode optar por não fazer os ajustes. Mas, se não os fizer, poderá até agravar os problemas já criados. Para o país, portanto, o melhor a fazer é partir logo para a aplicação dos remédios amargos. 

Mais impostos?

De todos os ajustes, o mais complexo está no lado fiscal. O Brasil chegou à situação de ter um déficit primário real graças a uma política equivocada que levou ao inchaço dos gastos públicos e à redução das receitas do governo. 

Entre essas medidas estão as seguidas desonerações tributárias concedidas a determinados setores, principalmente à indústria, a título de estimular a atividade econômica.

As renúncias produziram uma conta que chegou a 100 bilhões de reais só em 2014. 

“Foram medidas que minaram a arrecadação do governo e não trouxeram nenhum resultado econômico”, afirma Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas.

Se os erros podem ser debitados da conta de Dilma e de seus dois ajudantes diretos nessa frente, o ministro Mantega e o secretário do Tesouro, Arno Augustin, o pagamento da fatura cai na conta dos brasileiros. 

Para Mansueto Almeida, especialista em contas públicas, o rombo terá de ser coberto com a arrecadação de mais tributos.

Isso num país que já entrega ao Estado 37% de toda a riqueza que produz a cada ano. 

“A lei impõe muitas dificuldades para o corte de gastos públicos no Brasil”, diz Almeida. “Por isso, um ajuste fiscal passará por aumento de impostos para gerar mais receita. Ou então o governo não fará o ajuste.”

A redução de gastos públicos depende de uma série de reformas que só teriam efeito no médio e no longo prazo. 

Para ter uma ideia da dificuldade em cortá-los, a proposta de orçamento da União para 2015 mostra que, do total de 2,86 trilhões de reais previsto para despesas, o governo tem autonomia para mexer em somente 10%, ou 295 bilhões de reais.

Nesse campo estão os projetos do Programa de Aceleração do Crescimento e gastos sociais, como o Bolsa Família e verbas para saúde e educação. 

O economista Felipe Salto, da consultoria Tendências, calcula que seria possível cortar, no máximo, 65 bilhões de reais — boa parte deles em investimentos do PAC.

Isso aliviaria a necessidade de elevar os impostos, mas atrasaria ainda mais a melhoria da infraestrutura. 

A conclusão: é melhor preparar-se para uma possível ressurreição da CPMF, o “imposto do cheque” extinto em 2007; para a volta da Cide, contribuição que incide sobre os combustíveis; para o fim das desonerações setoriais; e sabe-se lá o que mais pode vir pela frente.

A outra conta salgada vem da correção dos preços represados — destaque para os combustíveis e para a energia elétrica. 

No primeiro caso, a consultoria Tendências estima que o reajuste necessário na gasolina seria de 12,7%; e no diesel, 9%. 

Isso significa que os brasileiros teriam de gastar mais 30 bilhões de reais na compra de gasolina, diesel e etanol.

Essa correção alinharia os preços praticados aqui com os internacionais — a despeito do aumento de 3% autorizado nas refinarias no começo de novembro, a diferença continua. 

“Ainda que sejam justificáveis, os reajustes terão impacto na economia”, diz Fernando Simões, presidente da JSL, uma das maiores transportadoras do país.

Segundo ele, o gasto com combustíveis representa 8% dos custos de sua empresa. “Para compensar os aumentos, buscamos melhorar a produtividade”, diz Simões. 

Mas, se o preço do diesel for corrigido no ano que vem, o aumento será repassado aos clientes. 

No caso da energia elétrica, a conta está calculada em 80 bilhões de reais nos próximos anos, segundo Mário Veiga, presidente da PSR, consultoria especializada no setor elétrico. 

Parte dessa conta virá de um provável aumento de tarifas de energia, que deverá recair principalmente sobre a indústria.

As indefinições no setor elétrico estão impedindo que a fabricante de tubos plásticos Amanco renove os contratos de suprimento de energia — alguns deles vencem no dia 31 de dezembro. 

“Como as regras não estão claras, as fornecedoras estão preferindo esperar para assinar os contratos”, diz Maurício Harger, presidente da Amanco.

O que está claro é que o custo da energia não deve subir menos de 20% para a Amanco. “E, também, que não temos condições de absorver essa alta. 

Teremos de repassar os custos.”

Como se pode ver, o ajuste não vai ser fácil — nem barato. Mas é inadiável. 

O custo de não fazer nada será ainda maior. 

Um desarranjo fiscal poderia tirar do país o grau de investimento, o selo conferido pelas agências internacionais de classificação de risco de que somos pagadores confiáveis de dívidas.

Os efeitos seriam redução nos investimentos estrangeiros, mais desvalorização do real, mais inflação e alta nos juros. 

No fim das contas, o crescimento econômico seria menor do que já está, com impactos sobre a renda e o emprego. Os sinais, aliás, já estão sendo dados.

As últimas informações do Cadastro Geral de Empregos mostraram o pior outubro desde 1999: pela primeira vez, o mês fechou com queda de vagas. 

Foram 30 283 a menos. O PIB per capita vai cair neste ano.

“Se não quiser piorar mais os indicadores, o governo precisará desfazer os erros do primeiro mandato”, diz Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central. 

Que isso seja feito quanto antes — para que a conta dos brasileiros não aumente ainda mais.