Exploração de minerais na província de Tete, no centro de Moçambique.
(crédito: Portuguese Independent News Network)
Pensar o uso de recursos naturais e o desenvolvimento sustentável, a partir do Direito Internacional foi a motivação para o seminário que
aconteceu no último dia 11, na Universidade de Warwick, no Reino Unido.
O tema é cada vez mais relevante para o Direito internacional, já que a
exploração dos recursos naturais é uma das maiores causas de conflitos
internacionais e instabilidade política.
O evento reuniu
especialista da América Latina, Central e do Norte, além de Europa,
África e Oriente Médio. A pesquisadora associada do IETS, integrante
também do Center for Latin American Studies da Stanford University, Patrícia Galvão,
estava entre os participantes. Especialista em Direito e
Desenvolvimento e em Governança Global, Patrícia discorreu sobre a
Iniciativa para Transparência na Indústria Extrativa (EITI).
Em entrevista ao IETS,
a pesquisadora disse que nos últimos dez anos houve a necessidade de se
criar ações internacionais, como a EITI, para tentar promover mais
transparência e boa governabilidade na gestão de recursos naturais em
países como Chade, Nigéria e Moçambique, pobres em indicadores humanos,
porém ricos em recursos naturais.
Patrícia também
comentou sobre a posição do Brasil nesse cenário.
Para a especialista, é
inegável a crescente presença política e econômica brasileira em países
menos desenvolvidos, em especial na América Latina e África.
Cada vez
mais, empresas extrativas nacionais, como a Petrobras e a Vale, estão
atuando em países com grande potencial de recursos naturais, porém
pobres em governabilidade.
Essa crescente presença internacional,
acredita a pesquisadora pode motivar o surgimento de conflitos de
interesses entre o Brasil e seus parceiros menos desenvolvidos.
Leia abaixo a entrevista com Patrícia Galvão:
IETS:
As decisões sobre o uso dos recursos naturais e os caminhos para o
desenvolvimento de um país devem ser avaliadas com base no direito
internacional? Qual é a justificativa para isso?
Patrícia Galvão: De
acordo com a Carta das Nações Unidas e princípios de direito
internacional, cada país tem o direito soberano de decidir sobre o uso e
gestão de seus recursos naturais e sobre o papel desses recursos nas
estratégias de desenvolvimento nacional.
Cada país tem também a
responsabilidade de adotar políticas públicas para lidar com os impactos
sociais e ambientais provocados pelas atividades de extração desses
recursos.
Assim sendo, nenhum outro país ou entidade internacional deve
interferir nas decisões de países soberanos nessa área.
O direito
internacional seria aplicável apenas em casos excepcionais, quando
existam disputas entre países sobre a propriedade de recursos naturais
transfronteiriços (caso dos tratados entre Timor Leste e Austrália para
definir a propriedade das reservas de petróleo e gás encontrados no
compartilhado Mar do Timor), ou quando as externalidades negativas da
exploração de recursos naturais transcendam os limites territoriais de
um país (caso do projeto em andamento na Comissão de Direito
Internacional da ONU para adotar parâmetros internacionais de prevenção
de danos transfronteiriços relacionados a atividades com risco
ambiental).
Na teoria ? e em um mundo ideal ? cada país deve se
encarregar de adotar políticas nacionais públicas definindo se, quando e
como os recursos naturais em seu território serão explorados, e a
distribuição e destinação das rendas provenientes desses recursos, de
forma a que exploração desses bens coletivos possa contribuir para o
desenvolvimento econômico e social.
Na
prática, porém, diversos fatores fizeram com que a gestão de recursos
naturais no âmbito nacional tenha se tornado um objeto legítimo de
preocupação internacional, e, portanto um assunto a ser discutido e
potencialmente regulado internacionalmente.
Um primeiro fator a ser
destacado são os fortes impactos ambientais e sociais que caracterizam a
indústria extrativa de recursos naturais.
Esse setor econômico
registra, por exemplo, o maior número de casos de conflitos entre
empresas transnacionais e comunidades locais e povos indígenas, de
graves violações de direitos humanos e de acentuada degradação
ambiental.
Embora muitos países em desenvolvimento tenham conseguido
assegurar o seu direito de exercer maior controle e garantir maiores
benefícios com a exploração de seus recursos naturais, eles não
assumiram devidamente a responsabilidade de evitar, minimizar ou
compensar danos ambientais e sociais relacionados a essas atividades.
Além disso, a exploração crescente de recursos naturais - especialmente
os não-renováveis - está intimamente relacionada com o atual modelo de
desenvolvimento econômico mundial, que muitos consideram ameaçar o
equilíbrio do meio ambiente em escala global.
Diversos tratados
internacionais em matéria ambiental e de direitos humanos, especialmente
os aprovados na esteira do movimento de desenvolvimento sustentável
após a Guerra Fria, estabelecem parâmetros globais que visam influenciar
a forma como os países gerenciam os impactos sociais e ambientais das
suas indústrias extrativas.
IETS: A abundância de recursos naturais nem sempre resulta no desenvolvimento de um país, não é verdade?
Patrícia Galvão: Existe
uma relação ambígua e muitas vezes paradoxal entre a exploração e
exportação intensivas de recursos naturais e o desenvolvimento econômico
e humano de um determinado país.
A partir da década de 1980, varias
agências bilaterais e multilaterais de desenvolvimento passaram a
promover a exploração de recursos naturais em países muito pobres - tais
como o Chade, a Guine Equatorial e a República do Congo - como um motor
para alavancar o desenvolvimento econômico de países que têm
dificuldade para estabelecer ou atrair outras indústrias ou setores
estratégicos.
No entanto, também a partir da década de 1980, vários
estudos passaram a mostrar que um número expressivo de países ricos em
recursos naturais tendia - contra intuitivamente - a apresentar menor
crescimento econômico a longo prazo quando comparado a seus pares pobres
em recursos.
Além disso, esses países tendiam a apresentar piores
indicadores de desenvolvimento humano nas áreas de educação e saúde, e
seriam mais propensos a regimes autoritários e a conflitos civis.
Diversos acadêmicos e pesquisadores afirmam que essa "maldição dos
recursos" está relacionada a vários incentivos perversos de economia
política associados às vultosas rendas externas obtidas com a exportação
de recursos naturais abundantes.
Essa "maldição", no entanto somente
acometeria países que não possuem um arcabouço institucional de
governabilidade mínimo, arcabouço esse considerado indispensável para
lidar com os tais incentivos perversos.
A preocupação da comunidade
internacional passou a ser a de promover a melhoria do arcabouço
institucional desses países, para que pudessem beneficiar-se dos seus
recursos naturais abundantes.
Até meados dos anos 2000 o modelo usado
para realizar esse objetivo foi o de acordos bilaterais e/ou
multilaterais de ajuda para o desenvolvimento, com ou sem o uso de
condicionalidades.
Os
inúmeros esforços e investimentos financeiros para promover o
fortalecimento de instituições nacionais de governabilidade em países
pobres em indicadores humanos, porém ricos em recursos naturais não
foram frutíferos até o momento.
Os indicadores de governabilidade desses
países continuaram estagnados e em alguns casos deterioraram.
Com a
chamada nova "corrida de recursos" na África, alimentada especialmente
pelo expressivo crescimento econômico chinês, aumentou a preocupação
internacional com a probabilidade de que muitos países terminarão reféns
da "maldição dos recursos".
IETS: Existe um esforço internacional para reverter essa tendência?
Patrícia Galvão: Nos
últimos dez anos duas iniciativas internacionais foram criadas para
tentar promover mais transparência e boa governabilidade na gestão de
recursos naturais em países como Chade, Nigéria e Moçambique.
Uma
dessas iniciativas é uma parceria multisetorial transnacional com a
participação de governos, companhias de petróleo e minérios e
organizações da sociedade civil.
Ela se chama "Iniciativa para a
Transparência da Indústria Extrativa", ou EITI pelas suas iniciais em
inglês.
O EITI estabelece parâmetros mínimos de transparência e
participação na gestão de recursos naturais, e um processo de
verificação multisetorial da implementação desses parâmetros por países
participantes.
O segundo modelo de iniciativa foi adotado inicialmente
pelos Estados Unidos, que aprovaram uma legislação extraterritorial
requerendo que qualquer empresa extrativa listada em bolsas de valores
americanas declare todos os pagamentos que fazem a governos de países
estrangeiros.
Agora a União Europeia aprovou uma lei semelhante, e o
Canadá já estuda adotar a mesma medida.
Apesar dessas leis
extraterritoriais afetarem diretamente a empresas transnacionais
listadas em bolsas de valores em países desenvolvidos, seu objetivo é
contribuir para a maior transparência da gestão de recursos em países em
desenvolvimento que não contam com sistemas mínimos de governabilidade.
IETS: Como essa discussão influenciará os caminhos do Brasil?
Patrícia Galvão: A
discussão sobre padrões globais de governabilidade para a gestão
nacional de recursos afeta o Brasil em duas vertentes distintas, uma
interna e uma externa.
Por um lado está a questão sobre se esses padrões
estão - ou não - influenciando a forma como o Brasil regula e
administra os seus próprios recursos naturais, e de que maneira.
Por
outro lado, cabe analisar como o nosso país tem se posicionado - e como
deveria se posicionar - em relação a padrões globais que visam afetar o
desenvolvimento econômico e social de países menos desenvolvidos do que o
Brasil.
O Brasil já percorreu
um longo caminho na construção de instituições nacionais de
governabilidade, incluindo um arcabouço institucional nacional de
transparência e controle social na gestão de recursos naturais que se
equipara ao de países mais desenvolvidos.
Em uma pesquisa comparativa da
qualidade da governança nos setores de petróleo, gás e minérios em 58
países, divulgada pelo "think and policy tank" Revenue Watch Institute em 2013,
o Brasil ficou em 5o lugar, atrás apenas da Noruega, Estados Unidos,
Reino Unido e Áustria e a frente do Canadá e Chile.
Apesar desses
avanços ainda enfrentamos o desafio de consolidar esses ganhos
institucionais e de implementá-los efetivamente.
Até o momento o Brasil
tem um quadro de exportações mais diversificado (ainda que
excessivamente concentrado em commodities primárias) do que o típico
país dependente das exportações de minérios e petróleo que costuma
sofrer da "maldição dos recursos".
Uma questão em aberto é
se o marco institucional brasileiro está suficientemente consolidado
para enfrentar o esperado agravamento dos incentivos perversos de
economia política que irão acompanhar o aumento expressivo de exportação
do petróleo e gás dos depósitos do pré-sal.
Muitas das mudanças
recentes do marco legislativo de exploração de petróleo e gás no Brasil
após o descobrimento do pré-sal visam ampliar o controle estatal nesse
setor estratégico.
No entanto para alguns essas medidas também reduzem a
transparência e accountability
que vinham caracterizando o marco de governabilidade do setor extrativo
no Brasil.
Essa tendência pode ser um sinal de que os tais incentivos
perversos da exploração de recursos naturais abundantes já começam a se
fazer sentir com mais força.
A participação do Brasil em mecanismos
globais como o EITI poderia servir para garantir que os padrões de
transparência e participação no setor extrativo já conquistados pelo
Brasil não sofram um grave retrocesso, e para facilitar uma plataforma
para a discussão desses assuntos sob a luz da experiência de outros
países que passam por desafios semelhantes.
No
âmbito sub-nacional, estados como o Rio de Janeiro (que produz mais de
80% do petróleo brasileiro), cujos orçamentos estaduais dependem
basicamente de rendas de recursos naturais, poderiam também se
beneficiar ao adaptar padrões e mecanismos globais de boa
governabilidade para o contexto institucional local, para lidar com a
ameaça de "maldição dos recursos" no âmbito estadual.
No Peru e na
Austrália já existem pilotos de EITI aplicados a estados e sub-regiões
dependentes da renda dos recursos naturais.
IETS: E no âmbito internacional, como o Brasil está se posicionando?
Patrícia Galvão: A
discussão sobre padrões globais de governabilidade no setor extrativo
nacional também é relevante para a política externa brasileira.
É
inegável a crescente presença política e econômica do Brasil em países
menos desenvolvidos, em especial na América Latina e África.
Cada vez
mais empresas extrativas brasileiras como a Petrobras e a Vale estão
atuando em países ricos em recursos naturais, porém pobres em
governabilidade.
À medida que essa presença aumenta, aumentarão
inevitavelmente as chances de conflitos de interesses entre o Brasil e
seus parceiros menos desenvolvidos.
Por exemplo, o que acontece se o
BNDES apoiar com somas significativas de financiamento público um
projeto da Vale em Moçambique, projeto esse que venha a ser
inviabilizado por corrupção e ineficiência crônicos em virtude da
ausência de um sistema de governabilidade mínimo nesse país?
Essas são
questões que há muito desafiam os países mais desenvolvidos e que
influenciaram e influenciam as discussões do sobre padrões globais para o
setor extrativo.
Mais cedo ou mais tarde o Brasil terá que se
posicionar mais claramente sobre a sua posição em relação a esses
nascentes padrões globais.
O Brasil deveria se aliar aos países
ocidentais desenvolvidos nos esforços de criar regras globais para
tentar influenciar a gestão nacional de recursos naturais em países
menos desenvolvidos?
Ou deveria seguir a posição de Beijing que
privilegia a não-interferência nos sistemas nacionais?
Até o momento o
Brasil tem se aproximado mais de Beijing do que de Washington e de
Bruxelas.
O Brasil tem se recusado, por exemplo, a participar de
iniciativas como o EITI, que promovem maior transparência e
governabilidade no setor extrativo.
Até agora o Brasil também não
esboçou a intenção de acompanhar a tendência dos países mais
desenvolvidos de criar regras extraterritoriais para compelir as
empresas extrativas listadas em suas bolsas de valores a divulgar quanto
veem pagando aos governos de países ricos em recursos naturais, porém
pobres em governabilidade.
No momento não existe
uma discussão aprofundada no Brasil sobre qual deveria ser o papel do
país em relação ao problema da maldição dos recursos que aflige inúmeros
países parceiros.
Há consenso entre pesquisadores, no entanto, de que a
ausência das economias emergentes como o Brasil enfraquece esses
sistemas globais nascentes, especialmente quando a presença dos
emergentes no setor extrativo em países pobres está ganhando cada vez
mais espaço frente à presença de países desenvolvidos.
Essa realidade
traz uma urgência ainda maior a essa discussão.
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