Aspectos sociais, bíblicos e teológicos.
No Brasil, até um tempo atrás, corrupção era vista como coisa normal; não havia
tanta tensão sobre o assunto.
Alguns aceitavam de forma pragmática; o suborno
sendo visto como um pouco mais do que 'um jeito diferente de fazer negócios'.
Outros apenas faziam 'vista grossa'.
Existe, é verdade, essa cultura do 'jeitinho', da 'malandragem' como parte da
maneira de ser do brasileiro, quase que uma 'exaltação' dessa habilidade da
nossa gente de encontrar formas 'criativas' para resolver problemas.
A
corrupção, como ela se manifesta em nosso país, entra também por meio dessa 'validação
cultural' e quase que 'institucionaliza' a sua prática.
Com o desenvolvimento econômico do país, a indignação contra a corrupção, de
alguma forma, se dilui.
Alexandro Salas, diretor para as Américas da Transparência Internacional diz o
seguinte:
"Quando um país começa a ter uma economia mais sólida, é mais fácil ver
um cidadão comum perdoando atos corruptos, porque ele não faz um vínculo direto
de como a corrupção o afeta. Se agora ele tem um bom trabalho, um carro e se o
ministro rouba, ele fica irritado, claro, mas acha que isso não o atinge
diretamente."
No ranking de Percepção da Corrupção da ONG em 2011, o Brasil ocupou a 73ª
posição, entre 183 países.
Já no que lista o grau de propinas pagas, o país
ficou no 14º lugar - foram 28 países analisados.
O Promotor de Justiça Jairo da Cruz Moreira aponta os dez atos de corrupção
mais presents no dia a dia do cidadão comum:
- Não dar nota fiscal
- Não declarar Imposto de Renda
- Tentar subornar o guarda para evitar multas
- Falsificar carteirinha de estudante
- Dar/aceitar troco errado
- Roubar TV a cabo
- Furar fila
- Comprar produtos falsificados
- No trabalho, bater ponto pelo colega
- Falsificar assinaturas
"Aceitar essas pequenas corrupções legitima aceitar grandes
corrupções", afirma o promotor.
"Seguindo esse raciocínio, seria algo
como um menino que hoje não vê problema em colar na prova ser mais propenso a,
mais pra frente, subornar um guarda sem achar que isso é corrupção."
O antropólogo Roberto Da Matta defende que essa prática sistêmica é uma forte
razão pela qual o brasileiro é complacente com a corrupção na política, por
exemplo.
Nas palavras dele, "uma sociedade de rabo preso não pode ser uma
sociedade de protesto".
O ex-secretário geral da Nações Unidas, Kofi Annan, certa vez disse:
"A corrupção é uma praga insidiosa que tem um largo espectro de efeitos
corrosivos nas sociedades.
Ela sabota a democracia e o texto da lei, leva a
violações dos direitos humanos, distorce os mercados, corrói a qualidade de
vida e facilita o crime organizado, terrorismo e outras ameaças ao
florescimento da segurança da humanidade.
A corrupção fere o pobre
desproporcionalmente através dos desvios de fundos que deveriam ir para o
desenvolvimento, compromete a habilidade do governo em prover serviços básicos,
alimenta a desigualdade e a injustiça, além de desencorajar a ajuda e o
investimento externo.
Corrupção é o elemento chave no mau desempenhos das
economias e o principal obstáculo ao desenvolvimento e ao combate à pobreza".
(Kofi Anan)
Chico Buarque escreveu uma "letra" em que homenageia o malandro às avessas;
aquele que tem família, trabalha, que deixou a criminalidade.
Penso que ela
retrata bem essa mudança na maneira de enxergar a questão da corrupção no
contexto brasileiro, apontando que há algo problemático com essa "ética do
jeitinho".
Homenagem ao Malandro (Chico Buarque)
Eu fui fazer um samba em homenagem
à nata da
malandragem, que conheço de outros carnavais.
Eu fui à Lapa e perdi a viagem,
que aquela tal malandragem não existe mais.
Agora já não é normal, o que dá de malandro
regular profissional, malandro com o aparato de
malandro oficial,
malandro candidato a
malandro federal,
malandro com retrato
na coluna social;
malandro com
contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal.
Mas o malandro para valer, não espalha,
aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e
tal.
Dizem as más línguas
que ele até trabalha,
Mora lá longe
chacoalha, no trem da central
De que corrupção nós estamos falando?
A Bíblia trata do tema da corrupção da raça humana e do plano redentor
de Deus, do Gênesis ao Apocalipse; a corrupção lato sensu (o pecado, de uma
forma geral), que se desdobra em corrupções strito sensu (manifestações
específicas da rebelião humana).
Nosso foco é na corrupção como ferramenta de opressão econômica, afronta
ao pobre; a negação do acesso do outro aos direitos básicos pela malversação de
dinheiro público, pagamentos de propinas, superfaturamentos, etc...
Bryan R. Evans, da Tearfund, em sua livro 'O custo da corrupção',
circunscreve o entendimento de corrupção à fraude, apropriação indébita e
suborno que podem ocorrer através do abuso de poder, formação de cartel ou
negócios escusos/nebulosos; além disso ele categoriza a corrupção em três
tipos: a incidental, a sistemática e a sistêmica.
O fato é que 'corrupção' andará sempre de mãos dadas com a pobreza e,
por esse motivo, ela é uma questão de ordem moral e de direitos humanos.
Vejamos alguns efeitos práticos da corrupção: o alto custo do acesso aos
serviços de saúde e educação; padrões de saúde e segurança públicas precárias,
riscos ambientais, violação dos direitos humanos, precariedade do acesso à
justiça. Além das mulheres e das crianças, os portadores de deficiência,
pessoas com vírus HIV, idosos e os refugiados estão entre os que mais sofrem as
consequências da corrupção.
O que a Bíblia tem a dizer sobre o assunto?
E, ao refletirmos sobre e as
Escrituras, o que se espera que seja a nossa práxis como igreja de Cristo.
"E criou Deus o homem à Sua
imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou" (Gn 1:27)
"E viu Deus tudo quanto tinha
feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto" (Gn
1:31)
A desobediência da criatura humana abre as portas para toda a cultura de
violência e morte que vai descaracterizar a imagem de Deus no homem.
"A terra, porém, estava
corrompida diante de Deus, e cheia de violência.
Viu Deus a terra, e eis que
estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a
terra." (Gn 6:11-12)
A corrupção, como a conhecemos e a tratamos hoje, é talvez a violência
em sua forma mais cruel.
Não é possível dissociarmos a ideia de corrupção
daquilo que entendemos como violência à dignidade humana, seja pela
precarização dos serviços públicos, seja pela facilitação do crime ou pelo
aumento da miséria.
A corrupção aflige a terra desde a Queda.
Não é surpresa, portanto, que
muitos a vejam como algo normal, inevitável; um mal necessário na condução dos
negócios e a forma como o rico e o poderoso levam sempre vantagem sobre o pobre
e o fraco.
Porém as Escrituras deixam claro que a corrupção é uma injustiça e, mais
do que isso, elas nos chamam a um posicionamento contra a corrupção.
O relato de corrupção, propina ou suborno mais conhecido da história está na Bíblia.
Foram as 30 moedas de prata dadas pelos sacerdotes judeus a Judas Iscariotes
para que ele os levassem até o Jardim do Getsemani, onde Jesus e os discípulos
passavam a noite.
Lá Judas mostrou a eles através do beijo da traição quem era
Jesus. Judas era ganancioso e o dinheiro significava para ele, muito mais do
que lealdade ou amor. Ele foi motivado por ganância e ganho pessoal.
Quando ele
se deu conta do mal feito e das consequências da sua traição, jogou as moedas
no pátio do templo e cometeu suicídio (Mt 26 e 27; Mc 14; Lc 22).
Corrupção em forma de propina ou suborno é condenada ao longo de toda a
Escritura Sagrada.
Samuel foi o primeiro dos profetas do Antigo Testamento e um grande líder em
Israel.
Porém, mais tarde em sua vida, em sua casa, ele acusou os seus filhos
de não andarem em seus caminhos.
Foram avarentos, aceitaram subornos, torceram
a lei (I Sm8:3).
A
distorção da justiça é uma das piores consequências do suborno porque permite
que o rico explore o pobre.
Na despedida que Samuel fez junto ao seu povo na
coroação do rei Saul, ele perguntou: "...diga-me de quem recebi suborno e
com ele encobri meus olhos, e eu vo-lo restituirei?" (I Sm 12:3).
Ele teve uma vida
exemplar e a multidão não hesitou em responder:
"em nada nos defraudaste,
nem nos oprimiste, nem recebeste coisa alguma da mão de ninguém." (I Sm
12:4)
Davi, rei de Israel, fez uma pergunta retórica no Salmo
24:
"Quem subirá ao
monte do Senhor ou quem estará no seu lugar santo? Aquele que é limpo de mãos e
puro de coração. Que não entrega a sua alma à vaidade e nem jura
enganosamente."
No Salmo
26, porém, ele apresenta o homem que tem a mão direita cheia de subornos
em contraste com o outro homem do Salmo
15:5
que "não empresta o seu dinheiro visando lucro e
nem aceita suborno contra o inocente."
O profeta Isaías elogia "...aquele cuja mão não aceita
suborno." (Is 33:15).
E o profeta Amós denuncia "vocês oprimem o justo, recebem suborno
e impedem que se faça justiça ao pobre nos tribunais." (Amós 5:12)
Em seu artigo 'O que a Bíblia diz sobre corrupção', Hermes C. Fernandes
apresenta textos bíblicos categorizados em modos distintos de fraude financeira
nas esferas pública e privada, mostrando a corrupção como algo inaceitável
diante de Deus:
Advertência contra a corrupção no funcionalismo público
"Chegaram também uns cobradores de impostos, para serem batizados,
e lhe perguntaram: Mestre, que devemos fazer? Respondeu-lhes: Não peçais mais
do que o que vos está ordenado". Lucas 3:12-13
Advertência contra a corrupção policial
"Então uns soldados o interrogaram: E nós, o que faremos?
Ele lhes disse: A ninguém trateis mal, não deis denúncia falsa, e contentai-vos
com o vosso soldo". Lucas
3:14
Advertência contra a corrupção no Poder Judiciário
"Não torcerás a justiça, nem farás acepção de pessoas.
Não tomarás
subornos, pois o soborno cega os olhos dos sábios, e perverte as palavras dos
justos. Segue a justiça, e só a justiça, para que vivas e possuas a terra que o
Senhor teu Deus te dá". Deuteronômio 16:19-20
"Também suborno não aceitarás, pois o suborno cega os que têm vista, e
perverte as palavras dos justos".Êxodo 23:8
"O ímpio acerta o suborno em secreto, para perverter as veredas da
justiça". Provérbios
17:23
"Ai dos que...justificam o ímpio por suborno, e ao justo negam
justiça". Isaías 5:22a,23
"Até quando defendereis os injustos, e tomareis partido ao lado dos
ímpios? Defendei a causa do fraco e do órfão; protegei os direitos do pobre e
do oprimido. Livrai o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios. Eles
nada sabem, e nada entendem. Andam em trevas". Salmos 82:2-5a
"Não farás injustiça no juízo; não favorecerás ao pobre, nem serás
complacente com o poderoso, mas com justiça julgarás o teu próximo". Levítico 19:15
Independência entre os poderes:
"Pereceu da terra o homem piedoso, e não há entre os homens um que
seja reto. Todos armam ciladas para sangue; cada um caça a seu irmão com uma
rede. As suas mãos fazem diligentemente o mal; o príncipe exige condenação, o
juiz aceita suborno, e o grande fala da corrupção da sua alma, e assim todos
eles são perturbadores". Miquéias7:2-3
Advertência contra a corrupção no Poder Executivo
"Os teus príncipes são rebeldes, companheiros de ladrões; cada um
deles ama o suborno, e corre atrás de presentes. Não fazem justiça ao órfão, e
não chega perante eles a causa das viúvas". Isaías 1:23
"Pela justiça o rei estabelece a terra, mas o amigo de subornos a
transtorna". Provérbios
29:4
"Abominação é para os reis o praticarem a impiedade, pois com justiça
se estabelece o trono". Provérbios
16:12
Advertência acerca dos assessores corruptos
"Tira o ímpio da presença do rei, e o seu trono se firmará na
justiça". Provérbios 25:5
Advertência contra a corrupção no Poder Legislativo
"Ai dos que decretam leis injustas, e dos escrivães que escrevem
perversidades, para privar da justiça os pobres, e para arrebatar o direito dos
aflitos do meu povo, despojando as viúvas, e roubando os órfãos!
Mas que fareis
no dia da visitação, e da assolação, que há de vir de longe? A quem recorrereis
para obter socorro, e onde deixareis a vossa glória, sem que cada um se abata
entre os presos, e caia entre os mortos?" Isaías 10:1-4
Advertência contra a corrupção e a ganância no meio empresarial
"No meio de ti aceitam-se subornos para se derramar sangue; recebes
usura e lucros ilícitos, e usas de avareza com o teu próximo, oprimindo-o. E de
mim te esqueceste, diz o Senhor Deus. Eu certamente baterei as mãos contra o
lucro desonesto que ganhastes..." Ezequiel 22:12-13a
"Melhor é o pouco, com justiça, do que grandes rendas, com
injustiça". Provérbios 16:8
"O que oprime ao pobre para aumentar o seu lucro, ou o que dá ao rico,
certamente empobrecerá". Provérbios
22:16
Advertência contra juros absurdos praticados pelo Sistema Financeiro
"O que aumenta a sua fazenda com juros e usura, ajunta-a para o que
se compadece do pobre". Provérbios 28:8
"Sendo o homem justo, e fazendo juízo e justiça (...) não oprimindo a
ninguém, tornando ao devedor o seu penhor, não roubando, dando o seu pão ao
faminto, e cobrindo ao nu com vestes; não dando o seu dinheiro à usura, não
recebendo demais, desviando a sua mão da injustiça, e fazendo verdadeiro juízo
entre homem e homem; andando nos meus estatutos, e guardando os meus juízos, para
proceder segundo a verdade, o tal justo certamente viverá, diz o Senhor
Deus". Ezequiel 18:5,7-9
"Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre, que está contigo, não
te haverás com ele como credor; não lhe imporás juros". Êxodo 22:25
"Aos retos até das trevas nasce a luz, pois é compassivo, compassivo e
justo. Bem irá ao que se compadece e empresta, que conduz os seus negócios com
justiça. (...) É liberal, dá aos pobres, a sua retidão permanece para sempre; a
sua força se exaltará em glória".
Salmos 112:4-5,9
Advertência acerca dos Direitos trabalhistas
"Se desprezei o direito do meu servo ou da minha serva, quando
contendiam comigo, então que faria eu quando Deus se levantasse? E, inquirindo
ele a causa, que lhe responderia?" Jó
31:13-14
"Chegar-me-ei a vós para juízo, e serei uma testemunha veloz contra os
feiticeiros e contra os adúlteros, e contra os que juram falsamente, e contra
os que defraudam o trabalhador, e pervertem o direito da viúva, e do órfão, e
do estrangeiro, e não me temem, diz o Senhor dos Exércitos". Malaquias 3:5
"Vós, senhores, dai a vossos servos o que é de justiça e eqüidade,
sabendo que também vós tendes um Senhor nos céus". Colossenses 4:1
"Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás. O salário do operário não
ficará em teu poder até o dia seguinte". Levítico 19:13
Advertência contra lucros desonestos
"O mercador tem balança enganadora em sua mão; ele ama a
opressão". Oséias 12:7
"Não terás dois pesos na tua bolsa, um grande e um pequeno. Não terás
duas medidas em tua casa, uma grande uma pequena. Terás somente pesos exatos e
justos, e medidas exatas e justas, para que se prolonguem os teus dias na terra
que o Senhor teu Deus te dá. Pois o Senhor teu Deus abomina todo aquele que
pratica tal injustiça". Deuteronômio
25:13-16
"Balança enganosa é abominação para o Senhor, mas o peso justo é o
seu prazer". Provérbios 11:1
"O peso e a balança justos são do Senhor; obra sua são todos os pesos
da bolsa". Provérbios
16:11
"Poderei eu inocentar balanças falsas, com um saco de pesos
enganosos?" Miquéias 6:11
"Não cometereis injustiça nos julgamentos, nas medidas de comprimento,
de peso ou de capacidade. Balanças justas, pesos justos, efa justo, e justo him
tereis. Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito."Levítico 19:35-36.
No primeiro século depois de Cristo, o apóstolo Paulo se recusou pagar
suborno ao governador romano Félix. O governador admitiu que Paulo não havia
feito nada de errado.
Mas ele ainda assim o manteve na prisão porque
"esperava que Paulo oferecesse a ele algum dinheiro" (At 24:26). Paulo não pagou o suborno e como resultado ele
permaneceu preso.
Esse tempo na prisão poderia ser gasto em visitas e
encorajamento às igrejas que ele havia fundado ou, quem sabe, fazendo a tão
sonhada viagem missionária à Espanha. Porém ele escolheu não pagar essa quantia
em dinheiro que poderia ser facilmente arrecadada entre os cristãos ricos.
Nenhuma "justificativa" para o suborno poderia ser maior do que essa que o
apóstolo teve; mas ele se recusou a faze-lo.
Ao invés de visitar as igrejas (pessoas e não templos feitos por mãos de homens),
ele escreveu cartas para elas.
Cartas que nós lemos hoje.
O nosso sofrimento
pelo evangelho não se perde dentro da providência divina.
Essas passagens nos mostram que, tanto no Antigo como no Novo
Testamentos, o suborno é entendido como um pecado contra Deus.
Uma perversão da
justiça que permite que o rico explore o pobre; e dentre os pobres, mulheres e
crianças são os que mais sofrem.
Abusos de poder que só satisfazem a ganância.
A corrupção não é apenas moralmente errada.
Ela mina o desenvolvimento
econômico, distorce a lisura na tomada de decisões e destrói a coesão social.
A corrupção mata!
A corrupção é desonra a Deus e, por isso, é a antítese do
amor ao próximo.
No episódio de Caim e Abel, em Gênesis 4, vemos Caim buscando "comprar"
o reconhecimento do Senhor e para tanto, Caim decide tirar a vida do seu irmão.
O Senhor Deus questiona a Caim sobre o paradeiro de seu irmão.
Caim responde
com uma pergunta que tenta justificar a sua independência arrogante:
"Acaso sou eu o guardador do meu irmão?" (vs 9).
Somos, ou deveríamos
ser, os guardadores do nosso próximo; promotores de conciliações, construtores
de pontes e não agentes de violência e morte.
Como vimos no texto de Gn 6 "...
a terra estava corrompida aos olhos de Deus e cheia de violência."
Considerando que a corrupção, na perspectiva que estamos tratando-a hoje, é um
dos maiores, se não o maior, ato de violência direta ou indireta do homem
contra o seu semelhante e contra a criação, o que, então, nós, discípulos de
Jesus, podemos fazer?
Que contribuição podemos dar na luta contra a corrupção?
Considerando que toda lei de Deus converge em Cristo nos conclamando ao
amor a Deus e ao próximo (Mt 22:36-38),
e ele é a expressão perfeita da vontade do Pai para o homem, penso que o
próprio Cristo nos aponta o caminho a seguir.
1. Jesus nos apresenta o modelo da
não-violência
Na noite em que foi preso, quando um soldado veio na direção de Jesus, o
Mestre advertiu Pedro que já estava pronto pra briga: "Ponha a
espada de volta...o que vive pela espada, morrerá por ela" (Mt 26:52).
Os valores do reino de Deus
são outros.
Nosso poder é poder para ser e para servir; não para revidar na
mesma moeda.
O modelo de combate do cristão não passa pela reprodução da
violência.
2. Jesus apresenta a fonte da
violência
"E, chamando outra vez a multidão, disse-lhes: Ouvi-me vós, todos,
e compreendei.
Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que
sai dele isso é que contamina o homem.
Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os
adultérios, as prostituições, os homicídios,
Os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a
blasfêmia, a soberba, a loucura.
Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem."
Marcos 7:14-23
Ainda que a violência em forma de corrupção possa ser manifestada
através de sistemas, esquemas e estratagemas, sabemos que a fonte será sempre o
coração corrupto do homem.
E é muito bom entendermos isso porque nos ajuda a
colocar as coisas em perspectiva e a compreendermos pelo menos duas coisas:
Primeiro que, potencialmente, todos nós estamos sujeitos à corrupção e
precisamos ser cuidadosos em como vivemos a vida. Segundo, ajuda-nos a entender
que a corrupção é uma questão de escolha pessoal, e não o fruto de um sistema
sem rosto. Para cada escolha, uma responsabilidade.
3. Jesus nos encoraja a enfrentarmos
a violência com bravura
Jesus ensinou que o mundo é um lugar perigoso de se viver.
Mas ele desafiou
seus seguidores a não terem medo.
"Não temam aqueles que matam o
corpo mas não podem matar a alma." (Mt10:28)
Ele também disse: "Eu lhes disse essas coisas para que em mim vocês tenham
paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci
o mundo". João 16:33
Tenham ânimo!
A tradução para o inglês é 'sejam bravos!'
Que tipo de bravura é essa que Jesus pede dos seus seguidores?
4. Jesus exige de nós uma resposta à
violência
Penso que é no sermão do monte onde vamos encontrar aquilo que Jesus
deseja que façamos em relação à corrupção e a qualquer forma de violência.
As
palavras de Jesus tratam dos desafios da vida real. É quando ele diz:
"Felizes os pacificadores pois eles serão chamados filhos de Deus."
(Mt 5:9).
Fazer a paz dá trabalho, trabalho duro, trabalho frustrante, muitas
vezes inconveniente.
Felizes aqueles que gastam as suas vidas a serviço da
reconciliação e da shalom.
Em seu livro, O Custo do Discipulado, Dietrich Bonhoeffer diz:"Os
seguidores de Jesus foram chamados para a paz.
Quando ele os chamou, eles
encontraram sua paz, porque ele é a sua paz...Mas a eles foi dito que deveriam
não apenas ter paz, mas fazer a paz."
John Stott, em seu comentário do sermão do monte diz, "Agora
pacificação é uma obra divina. Por paz entenda-se reconciliação, e Deus é o
autor de toda paz e reconciliação."
Pacificadores, portanto, são
construtores de pontes num mundo de relações corrompidas.
Pacificadores agem em nome de Jesus, na
base dos valores do reino de Deus, promovendo diálogos para a reconciliação.
Pacificadores enfrentam a corrupção de
forma pacífica, inteligente e criativa, tendo sempre a justiça do Reino como
referência para a Shalom.
Pacificadores vão às ruas e clamam pela
paz; articulam-se com outros grupos que tenham interesse comum para fazerem
trabalho conjunto; promovem campanhas; mobilizam igrejas na ação contra o mal
em forma de violência e corrupção;
Pacificadores acompanham as decisões
políticas e buscam incidência pública objetivando a implementação de mecanismos
de controle social e transparência;
Pacificadores dão voz aos sem-voz.
Pacificadores buscam diálogos possíveis
e quando não é possível, falam sozinhos.
Pacificadores são o sal que preserva o
mundo da corrupção do mal.
Pacificadores são a luz que traz às
claras aquilo que se esconde na escuridão.
Pacificadores bem-aventurados; que têm
fome e sede da justiça de Deus.
Corrupção é uma questão de caráter.
Não se garante transformação de
caráter através de controle social e transparência na administração pública.
Caráter, nós sabemos, só quem transforma é Deus.
Há, portanto, dois níveis de ação da igreja nesse terreno.
O primeiro é de fazer um chamado à própria igreja a um posicionamento ético que
identifique os frutos de justiça produzidos pela ação do Espírito Santo na vida
daqueles que se dizem nova criação.
Ou seja, precisamos admitir que somos parte
do problema desse país. Uma igreja corrompida e corruptora não tem o que dizer
em matéria de ética na governança pública.
O outro nível de ação nos move na direção de uma maior incidência pública para
a garantia do cumprimento das leis, ou a criação de novas leis, que contribuam
para a construção de um ambiente social onde se garanta um mínimo de justiça.
Aqui eu quero citar o Pr Carlos Queiroz, para argumentar em favor de um
engajamento da igreja nas questões de justiça e paz no mundo dos homens:
"A justiça de Deus é bem maior que o conceito de justiça do ser
humano. É baseada em valores como mansidão, sensibilidade, misericórdia e amor.
Mas isso não quer dizer que a justiça de Deus é menor do que o mínimo exigido
pela justiça humana, como o direito à habitação, alimentação, saúde, educação,
lazer, liberdade de exercer a vocação humana."
"Uma igreja socialmente responsável se utilizará dos instrumentos
democráticos para que a sua espiritualidade em missão tenha incidência nas
políticas públicas, nos direitos do cidadão e nos testemunhos de boas obras e
prática da justiça."
Deus quer vida; a corrupção destrói a
vida.
Deus quer justiça; a corrupção oprime o
pobre roubando-lhe os direitos.
Deus quer riqueza honesta; a corrupção
cria obstáculos ao desempenho econômico.
Deus quer comunidade; a corrupção
destrói a confiança e a segurança.
Deus quer dignidade; a corrupção
destrói a dignidade e a credibilidade.
Deus quer paz; a corrupção fortalece a
violência e os aparatos militares.
A luta contra a corrupção, portanto, faz todo o sentido para aqueles que
dizem conhecer o Deus incorruptível e almejam viver para servi-lo, refletindo
na vida o Seu caráter santo.
A revelação de Deus na Sua Palavra nos confronta,
nos transforma e nos move à missão.
A missão se dá no solo real de um mundo
corrompido e fraturado.
Sempre que a igreja(pessoas) busca se envolver na justa causa
contra a corrupção estará respondendo à Deus de forma diferente de Caim:
"Eu sei, sim, onde está o meu
irmão, porque sou responsável por ele.
Sua vida
me diz respeito.
Como posso servi-lo?".